O alemão não é leve
Essa semana, minha vó fez 89 anos
Eu lembro de uma camiseta do piu-piu que ela me deu e que eu amava. Um dia minha mãe colocou fora porque já-tinha-dado-de-si. Eu lembro dela servindo mais arroz do que eu gostaria. Eu lembro de comer pirê na casa dela. Eu lembro de um dia em que dormi no apartamento dela e que ela acordou vinte vezes para ver se eu estava bem. Ela ainda amarrou um ventilador na maçaneta pra gente ouvir se alguém entrasse. Eu lembro de secar o cabelo dela com secador e ela fechar os olhos como criança.
Eu lembro de muitas coisas ruins também, mas acho que não preciso contar. Elas servem como aquela lembrança de que as pessoas têm vários lados e de que as pessoas sofrem e não sabem lidar com os sentimentos depois disso. A vó me dava medo quando tava braba. Mas a camiseta do piu-piu e o desenho da louça da casa dela são lembranças mais fortes.
Fazia uns dois anos que eu não ia ver a vó. Ela tem Alzheimer há uns dez — eu acho porque já perdi a noção. Teve a parte engraçada e parte complicada; não sei qual parte é agora. Eu ia ver ela quase toda semana e gostava do jeito como ela me olhava, mesmo sendo super triste tudo. Ela me dizia pra brincar com as outras crianças — eu não era criança e não tinha nenhuma outra criança lá. Ela me dizia pra esperar o vô voltar — o vô morreu antes de eu nascer e eu amaria ver ele, mas acho que assim não ia ser bom não.
Eu parei meio naturalmente de ver a vó quando ela começou a sumir lá de dentro. Não sei se foi quando ela esqueceu quem eu sou ou se ela já esqueceu quem ela é. É bem triste. Ela nunca foi a vovózinha do desenho animado. Mas ela foi sumindo. Essa semana, eu quis ir lá e fui em plena terça-feira de tarde. Constatei: para mim, ela não tá mais lá. Ela ainda vive nos olhos da minha tia, tem muito amor naquela troca de olhares e acho que eu prefiro continuar vendo a vó lá de dentro dos olhos da tia.
Não foi triste ver ela, ela tá bem, não tem nenhum problema aparente. Só tá velhinha. Mas não é a vó. Fiquei pensando muito. O corpo realmente não é nada e a vida é a coisa mais confusa do mundo. Parar de procurar sentido pode ser o melhor que há. Não me arrependo de ficar dois anos sem ver a vó. Não me arrependo de ter ido ver a vó. Espero que tenha felicidade no que vem depois dos 89, felicidade mesmo.
*Escrevi esse texto em fevereiro de 2017. Hoje minha vó faria 91 anos, mas ela faleceu poucos meses depois daquele aniversário. Teoricamente, essa foi a última vez que a vi; na prática, não sei, porque ela já não tava lá.